sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

NATIVIDADE

Carregava com ela apenas uma mochila e dois sacos usados do Continente, meio entupidos por parcos pertences e dois livros despidos de algumas folhas e capas maltratadas, daquilo que me foi dado ver.
Educada ao pedir licença se se podia sentar ao meu lado na carruagem vinte e um do Intercidades, com destino à cidade da Guarda, com lugares marcados mas à janela, lugar que me pertencia. Acedi.
Silenciosa sempre até para lá de Coimbra, naquele ar austero, nem seria bem austero, diria que meditabundo, pelas rugas que lhe crepitavam, iam e vinham por debaixo dos olhos...estranho.
Outrora, devia ter sido uma bonita mulher pelos rastos que dela se desprendiam, do seu olhar e maneios.
Apenas uma e por uma vez somente, a olhei naqueles olhos mortiços que quase e por milagre se incandesciam por segundos ao olhar para as serranias da Serra das Estrela.


Ela ia para o destino dela, eu tinha de ficar no meu. O dela seria o final da linha e pedi-lhe licença para retirar os meus pertences, não queria incomodar, apesar de faltar um quarto de hora para o meu destino e foi aí que falou.
Ia à procura de paz, ia à procura das suas gentes na esperança de estarem vivas e a aceitarem.
Ia um pouco á tõa na esperança que sendo Natal, por ali encontraria um pouco de perdão.
Havia feito mal e por tal havia passado dez anos na cadeia de Tires. 
Dez Natais que havia perdido por estar longe dos seus e mais que arrependida.
Quem sabe se aquela fogueira não derretesse as suas lágrimas sofridadas e arrependidas?
Era disso que vinha à procura!
Tinha de sair na minha paragem e perguntei-lhe o nome.
Apenas e no primeiro sorrisso que lhe vi, respondeu:
- Natividade...
Ironia do destino.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Crendices...


 Reza a lenda que, inicialmente, um homem foi mordido por um lobo e ficou enfeitiçado. Assim, nas noites de lua cheia ele se transforma, adquirindo garras de lobo e um corpo coberto de pelos, e sai uivando em busca de seu alimento predileto: sangue.



Em tempos recuados a feitiçaria era um assunto normal do quotidiano, crenças e superstições vinculadas às bruxas que, com as suas ervas e rezas, curavam os doentes e aconselhavam aqueles que tivessem dúvidas em algum aspecto de suas vidas. Por tal e por desconfiança, eram perseguidas até ao extremo de arderem na fogueira.
Permitam que lhes reze um conto a este respeito de medos.
"... as bruxas, melhor, as dignas feiticeiras empossadas por aqueles a quem subtraiam o pouco do nada e dos seus, que eram tal e qual como elas, não sendo o dom da feieza as tornar medonhas nas olheiras cavadas e verrugas. Vestustas nas mantas rompidas que lhes ecorregavam pelos ombros, cabelos eriçados, olhar eléctrico para os céus, dentes arreganhados dos poucos que iam restando e aquando uma ovelha ferida e um cão mordido desciam das serras por ter escapado a um lobo faminto e procurando refúgio, se coçavam e excitavam na esperança de verem o pastor surgir quase estrelhaçado.
Era um gáudio que tal viesse a acontecer, pois disto fariam mestrias das suas mezinhas e milagres. 
Mas...
Lá acima, na serra, pairavam medos, andava isso sim e a sério, o demónio à solta. Aquele a quem o povo chamava e ainda hoje nos medos sussura, o  lobisomem. 
Com as debaixo, na aldeia, ainda  o povo se iam aguentando, mais não fosse com rezas, résteas de alhos pendurados à porta e figas aquando por defronte passavam, mas o diabo lá por cima?
O Manel das Vacas ia para oito dias que nâo aparecia no povo e os poucos que com coragem subiram a serra acima, apenas viram um rebanho tresmalhado por entre giestas e sargaços,  ao deus-dará.   Procuraram o pastor até ao cair da noite, embrenhados nas ravinas e silvados e nada.
Coitado por onde ele andaria e resignados empreendem o regresso, mais apressado do que previam pois ao ouvirem um rugido maior que um trovão, desancaram por ali abaixo. Tal conta quem ouviu de quem ouviu contar.
Célere correu a novidade e se o medo já era grande, imaginem. Pôr cobro à situação foi o motivo pelo qual o conselho da aldeia reuniu de emergência, mas quem teria coragem para afrontar a Besta e talvez resgatar o Manel das Vacas? Ninguém.
Eis que no meio do ajuntamento se ergue a voz  meia carregada pela bebida, do Jamaicas, homem que agora gasto pelo vício de tantos anos fóra e sentencia: quem lá vai são as feiticeiras, mais nada!
Elas estavam presentes, discretas nos bancos ao fundo, porventura esperando restos de calamidades e tal e no incomodo as fez erguer em sobressalto, nuns ralhos estridentes que aquilo não era com elas que eram gentes de bem. Foi tal a algazarra e humilhação que condescenderam a partir à meia noite, na lua cheia e foram...
Subiram no ritmo das suas lenga-lengas mesureiras e quase no topo da serra, sai um urro medonho.   
Esqueciam o diabo e gritavam por Cristo e eis que lhes aparece o Manel pastor, dentes afiados, peludo e sanguinário.
Até hoje nunca mais alguém viu estas gentes, mas dizem que por lá andarão!

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Se continuas a olhar para trás, não consigo escrever...
Sei que já não há galinhas na porta ao lado, o cravelho nem tal segurava, agora foi trocado por uma tranca rançosa, prendida por uns nagalhos; mas teimoso, achas que por riba acima é o caminho, então vai!
Vai e traz notícias do nosso ribeiro, se fores lamechas, não olhes para a direita aonde ele corria a seu tempo, tempo que não sabes contar, apenas cheirar, pois o tempo foi passando, os teus amigos se foram aos poucos, aqueles que enfrentavam os bichos das galinhas e demais...
Sinto que tens coragem de sózinho, correres com os fantasmas, como tu, perdidos na noite.
Sim, por seres aquilo que és, um solitário, mas profeta do teu modo de ser.
Sabes, tenho saudades tuas.
Tens sido bem tratado que eu sei, mas também que andas triste e ambos o tal sabemos, o motivo...
A dona e amiga  não pode estar presente pelos motivos que sabes, mas posso ir ter contigo neste final de semana?
Quem sabe se não encontramos uns tortulhos, mas tão sendo, brincamos junto, não é bom?
Até que não te podes queixar muito, tens um pátio tão bonito e que eras uma seca em Agosto, sempre agarrado aos meus pés.
Espera por mim amigo e vamos viajar no nosso tempo.






Entre a rua e tua casa.


ESPERA...

quinta-feira, 3 de maio de 2018

EU TENHO UM CÃO COMO AMIGO.

Um cão real que nos transporta ao maravilhoso mundo da fantasia.
Tão bom sermos garotos a vida inteira...
Bora, Farrusco!


quinta-feira, 22 de março de 2018

TEM CALMA, AMIGO  FARRUSCO...


Sentes a faltada dona, andas meio desorientado, compreendo, mas ela teve de vir para Lisboa por motivos de saúde. Estava mal, mas agora está melhor, graças a Deus!
Sabes, fazes parte das minhas histórias e daquilo que quero contar e se tu quiseres eu quero...
Vou falando com amigos daí e sei que és bem tratado, mas sei o que te falta: Ela.
Sabes, tenho pena de ti, mas uma pena carinhosa como agora em que me correm as lágrimas como se estivesse a teu lado, aí no páteo, enrolados na tua manta à espera que a luz da cozinha e alpendre se acendesse.
Triste deve ser a noite vazia, solitária...
Soube que no Domingo estavas antes da missa começar, te sentares no lugar dela; nao é coisa que se faça, uma parte assim!
Mas, tenho boas notícias pra ti: falta uma semana para estarmos juntos.
Sim, Ela também vai comigo...
Agora sossega!

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Ainda hoje na retina das memórias, carinhosamente o José guarda a figura do Peralta.
Estava fora do tempo moderno que lhe ia restando no bengaleiro pela escassez as indumentárias que tomara ele que lhe sobrassem...
Aquele homem ia caminhando pela idade para o vazio, ele que tantos anos havia vivido no meio do vício e do putedo por trabalho, funcionário e nao ordinário, tinha à sua  sua espera na rua dos Cavaleiros junto ao Martin Moniz, a Graça ficava mais acima, a sua gata, Palminhas.
Materialmente, o Peralta com as "gorjas", até que vivia bem e algum arrecadava por não esperar reforma. As coisas são como são...
- José, vem comigo, pois se penso quem tu és, hoje não dormes na rua.
Sentiu  que o estava a pôr à prova pela força nas palavras, ele sabia quem era...
A casa estava imaculada, tudo no sítio e atá a Palminhas tinha o seu canto limpinho.
Fez chá para ele e aqueceu um copo de leite com chocolate para o José...e duas torradas.
Deixou-o ficar na sala, antes de lhe recomendar: tens toalha na casa de banho e cobertores no sofá, fica à vontade e amanhã falamos.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Nascendo até hoje...


Para as bandas do Saldanha, a noite não batia horas.
Era dos que por ali andava, mijando pelas esquinas, cagando onde bem calhava, vasculhando o que sobrara. A vida assim tal ditara!
Diziam que pelas quatro era a hora da morte, a cidade ficava parada por a Carris recolher no Arco do Cego e nesse entretanto tudo do mais ruim podia acontecer,  que me importava se tudo havia perdido, mas riqueza, duas beatas no bolso, uma ainda bem banquinha, fina, devia ter valor nalguma troca.
 Outrora havia conhecido estas zonas com bom sapato, camisa branca e calças à boca de sino, cabelo brilhante e animava as discotecas  pretendido pelas mulheres.
O velho Peralta dominava o bengaleiro no seu bigode afiado (ele dizia encerado) para receber mais uns trocados nos cuidados de guardar os agasalhos dos chegantes.
Vi-o à distância, do lado de fora, o bigode mais grisalho no seu corpo encurvado, mas solene na sua postura.  A alcatifa vermelha já mostrara  melhores dias, desbotada, assim a vi aquando e sem nada ter a temer me aproximei da porta onde outrora era bem recebido.
Medos do nada, era mais um pelas ruas, no contraponto do dia com a noite, o frio e o quente ou o bem e o mal.
Fiquei por ali encostado à conduta do ar quente que vinha de dentro; estava-se bem e mais tarde viriam migalhas das sobras de mesas fartas do bom e do melhor...
E por momentos assolou a inquietude de aqui estar e tal sacudi.
Não queria lembranças farto de mentiras num mundo construído às avessas.
Estava bem ali, meio acomodado no quente e o pesadelo vem sempre num clique, o fechar da porta, desta e porventuras outras vezes pelo velho Peralta.
Olha em volta sossegado e desce o único degrau. Resmunga que  o tempo está frio, olhando para mim de soslaio sem querer conhecer  ou dar importância a alguém que por ali estivesse, afinal era importante na casa.
O raio do velhote que anos antes me tirava o casaco com mordomia ... quem diria!
- Peralta!
Olhou e retrocedeu numa calma dolente habituada a episódios da noite.
Parecia que a vida o havia preparado para isto, bons e maus momentos e por tal ficou especado , mais hirto e menos corcunda à minha frente, a estudar o possível perigo que poderia enfrentar.
_ Que queres?
Eu nada queria e o que queria ele não me podia dar. Queria o meu tempo de volta,mas esse havia perdido e ele jamais me poderia ajudar se nem sequer me reconheceu, Afinal quem  era eu?
- Nada, Peralta.
Foi então que vejo o Peralta, o velho Peralta meio atordoado se encostar à esquina e pelo seu olhar fuzilante, sentir medo.
- José?
- Sim...


terça-feira, 16 de janeiro de 2018

O LIVRO, O DESAFIO.

Muita gente me pergunta ao longo do tempo, a razão de não expôr as minhas vivências, as solicitudes da vida, as  iniquidades complacentes de um turbilhão de vida.
Tanto que o tenho tentado em meros escritos, dignos, de outra forma  jamais  teria ousadia para...
Medos tenho, em estar á altura para o desafio. Medos por recear abominações malévolas, por des-gentes, mas ciente que vou mexer com muitas coisas.
Conheci muita gente da "alta", desde a igreja, politica e desporto...e seus meandros.
Conheci e vivi com as gentes da minha terra.
Agora sim, vou em frente! 


sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

RUÇITO, O AMIGO DE FARRUSCO.




A primeira vez que havia visto o puto, ia ele assentado na parte detrás do carro das vacas do seu avô Justino da Miquelina, baloiçando as pernas ao  ritmo dos solavancos ditados pelos buracos do caminho rude que conduzia lá para o cimo da serra de S. Pedro.
Extasiado, assim me pareceu aquando comigo e com meu pai se cruzaram  no Alto dos Pinheiros a puxar para o lado dos Valagotes e tal como nós, iam para as sementeiras.
Atento ao que o rodeava, ele menino da cidade, pareceu-me saber escutar o silêncio apesar de algum espanto que vislumbrei quando a natureza se soltava em gargalhadas da passarada e dos gritos de quem de aguilhada na mão, dava rédea curta aos animais para acautelar uma boa chegada ao destino.
Com o tempo e quando ele vinha de férias, era por ali que o ia encontrando, menos menino e mais afoito, ao ponto de por vezes m acompanhar, serra acima, o que era e é duro, mas via que ele gostava e um dia dei-lhe a conhecer o Farrusco. Acho que este nao gostou, quiçá por ciúmes, mas gradualmente foi-se habituando e fiquei feliz no dia em que os vi a brincar juntos, como duas crianças, mas mais feliz por entender que aos poucos o Farrusco ia  suportando de modo mais leve as suas desgraças, embora sem as esquecer.
Ficaram amigos, ele e o Ruçito.       


Ao seguir deste Natal frio de rachar, e depois do que se havia passado comigo e com o Farrusco, tal com contei no post anterior, veio uma aberta de sol de apenas quase um dia e bom, vou ver se apanho uns míscaros e quem sabe veja como está o meu amigo lá para cima, nas terras de cotovias de dia, de corujas,, lobos,e raposas de noite  e lendas...
Para baixo, nas quebradas, as badaladas do toque do sino  anunciavam o meio-dia de um céu azul intenso a que uns desperdícios brancos de nuvens, aqui e acolá, mais abrilhantavam.
Ele há coisa que por vezes o entendimento não acompanha de forma alguma. Nem a ciência, apenas o coração.
Do lado esquerdo, por debaixo da cadeira do rei e por entre os lameiros e a orla do pinhal, estavam estes dois amigos como que me aguardando com uma cesta de míscaros.
Sim, há coisas...
Acho que eles disseram que era o meu cabaz de natal.