sábado, 12 de outubro de 2013

A Caminho do Seminário

Seminário de Gouveia
Estava a findar o tempo da meninice, a escola primária terminaria daí a dias para quem ficasse aprovado no exame da  quarta classe. A maioria já tinha o destino marcado, trabalhar no campo a tempo inteiro,  para os seus ou  para  outros, ajudando às despesas do dia-a-dia.
O meu já estava também traçado, iria para o seminário!
Um padre amigo da família e eles próprios tal haviam decidido e eu como pouco percebia de vocações, pouco me ralava e ainda faltava o exame da primária.
No dia do exame lá fomos até Aguiar da Beira, sede de concelho de Forninhos, fazer o "tal exame" uns melhor preparados em estudo que outros.
Era dia grande para as famílias e para nós, com roupa a estrear, caneta de tinta permanente nova, que mal sabíamos usar e muito nervoso à mistura. Prova escrita e oral, que metia rios, linhas férreas, províncias do ultramar, além do "demónio" que era o ditado. Passei com distinção, mas quase metade ficou pelo caminho e não voltaram à escola, o trabalho já chamava pelo corpo.
Claro que houve festa e até nos deitaram foguetes, além dos tostões que tios e padrinhos nos davam. Estávamos uns senhores e já ricos, com dinheiro no bolso!
Volta e vez, pensava no seminário e porque teria de ir para lá,  caro para as posses dos meus pais, ficava longe, na Serra da Estrela e só voltaria à terra e aos amigos nas férias. Parece que ficava bem ter um padre na família sempre tão ligada à igreja. Havia que gozar os três meses que faltavam, em total liberdade, agora que já tinha o estatuto de estudante, mas o tempo voou e chegou o dia.
Na mala já ia o enxoval, tudo com etiqueta cozida com o nome.
Manhã cedo, no carro do meu tio António e tia Helena, mais a minha mãe e pai, lá arrancamos para a viagem. Era o início de Outubro e à saída da aldeia ainda vi a malta da minha "tribo" a surripiar castanhas de castanheiros com dono e eu enfiado num carro a caminho de ser padre. Comecei a sentir uma espécie de angústia. Ou se calhar revolta.
Por mim saía já ali, mas começaram a elogiar o seminário, que era muito bom, dos alemães, novo e com campos de futebol e piscina. Nem se usava fato de seminarista, vestia-se à civil e assim, entre curvas e contracurvas, passamos a vila de Gouveia, hoje cidade e subimos mais um pouco em direcção à serra.
Pára o carro passada a entrada  e fiquei colado ao assento, aquilo era gigantesco, com andares, jardins e freiras e padres por todo o lado com ar feliz.
- Meu Deus, pensei, será que morri e vim parar ao céu?
Lá entramos entre sorrisos e cumprimentos de boas vindas em direcção à recepção para cumprir os formalismos. O passo seguinte seria mostrar as instalações e a camarata aonde iria dormir por muitos anos.
Parecia que estava atordoado e só acordei quando começo a ouvir choros e mais choros, eram outros como eu já na despedida. Parecia que tinha cola nos braços, então ia ali ficar sózinho? 
Ainda vejo a traseira do carro em direcção a Gouveia e o braços a acenar, estava incrédulo, afinal tinha vindo parar ao inferno, apesar de uma freira simpática me consolar.
Solto-me do braço da freira e foram apanhar-me meio quilómetro depois.
Continua...

26 comentários:

  1. rsssss...O que? Fugiste de lá?rs Legal te ler! abração,chica

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  2. Oh! Xico! Que recordação cruel!
    Ainda bem que deste a volta ao destino.
    E, pena nada, amanhã ser 2ªfeira! Felicidade, isso sim! Estamos vivos esperando o próximo fim de semana.
    Beijo

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  3. O caminho para o Seminário foi para muitas gerações o fim da meninice. Os padres e também a família, achavam que podiam traçar um caminho diferente com a ida para esta casa. Aliás, se fizermos uma sondagem, quase todos os que foram para o seminário, recordarão que seguiam esse caminho por influência de um padre amigo da família. O meu pai, inclusivé, também foi seminarista nesses moldes.
    O teu 'post' relata a aventura diária de muitos jovens.
    Beijinhos e bom domingo pa ti.

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    1. Tens razão, Paula.
      Tu que conheces a realidade da nossa aldeia, sabes pelo que viste ou ouviste, o quão difícil era "fugir" ao destino traçado. O orgulho dos pais era puro embora agora à distância nos pareça uma ditadura.
      Era o corolário de uma vida de trabalho árduo.
      Recordo que quando fiz o segundo ano, em Forninhos gente houve que me chamava professor. A mim que quase "cheirava a cueiros". Mas era assim e os familiares sorriam "inchados"...
      Beijos.

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  4. Olá Xico, mais um capítulo da sua história de vida cuja narrativa apreciei imenso tanto nas lembranças do dia do Exame que era uma festa (na minha aldeia era exatamente assim) como a sua entrada no Seminário. Pareceu-me estar a reler a Manhã Submersa de Vergílio Ferreira! E depois não pude deixar de sorrir acerca da sua evasão, apesar de agarrado pela irmã! Sorri, mas compreendo como deve ter sido dramático! Neste momento a entrada nos seminários já se faz por opção, num contexto diferente, mas noutros tempos imagino o quanto seria difícil. Vou aguardar com curiosidade o desfecho da sua “fuga”. Desejo-lhe uma boa semana. Abraço. Ailime

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    1. Amiga Ailime, quase me apetece dizer "Uma Tarde Submersa".
      A minha primeira fuga abortou em meio quilómetro.
      Da alegria do exame e aquele tempinho de férias antes da partida, achei que era o último desejo do condenado, confrontado com a realidade que em mim próprio via.
      Tentarei ter algum cuidado mínimo para relatar, melhor, aflorar certos episódios daqui em diante, até por a filosofia deste meu espaço, ser de cidadania e alerta para os jovens. E estou quase a chegar a partes de reato "sérias", de reflexão.
      Abraço grande.

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  5. O i Xico,
    Imagino a sua angústia nessa hora, a separação da família, dos amigos, da vida meio livre de criança, e ter que ficar no seminário, um lugar estranho, com pessoas estranhas à você, tudo isso é muito forte pra uma criança, mas com certeza tudo isso serviu para o seu crescimento como ser humano, aguardo os próximos capítulos.
    Beijos!

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    1. Olhe amiga Fátima,
      Recordo que adormecia ao longo dos primeiros meses, as rever montes e ribeiros, tudo ao pormenor, depois os amigos da "tribo" e quando entrava em sonho no pátio da casa dos meus pais e gritava "Mãe", acordava e chorava.
      Como outros igualmente, presumo.
      Mas aprende-se.
      Abraço grande.

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  6. Nossa,Xico! Adorei a primeira parte da história! Daria um excelente romance esses seus relatos. Quanta angústia não deve ter sentido,ainda menino e longe da familia. Creio ser tradição entre os portugueses ter um padre na familia. Meu avô materno tentou, mas nenhum dos seus filhos teve jeito pra seminarista...rss...boa semana pra vc!

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    1. Amiga Anne.
      Com o devido respeito, "espere" pelos próximos capítulos. Não serão tão inocentes, pela positiva e negativa.
      Para trás ia ficando a idade da inocência, mas prometi ser frontal, não obstante moderado
      Abraço e boa semana.

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  7. Xico,

    Parecia que eu estava dentro de um filme, ao ler o sua história.
    Pra seguir esse caminho, é preciso muita vocação, e não só à vontade da família.
    Muito bom saber mais um pouquinho sobre você. Muito interessante os seus relatos de vida. Fez muito bem em abrir esse blog e partilhar conosco.
    Desculpe pela demora em vir lhe visitar.
    Um lindo dia! Beijos

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    1. Amiga Lucinha.
      Agora à distância podemos ver que a família pretendia mostrar ao mundo o porquê do fruto do trabalho e ter orgulho nos eventuais resultados.
      Nesse aspecto Deus ajudou e fui um contemplado
      Era por bem e o que me "preocupa" é em cada frase que gostaria de pormenorizar, mas não quero ser enfadonho, é ter o registo fotográfico na memória como se tivesse voltado atrás, a cada instante.
      Sinal de que foi bom.
      Um beijo.

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  8. Bom dia,Xico! Hoje passei para avisar que tem um texto seu em meu blog se quiser ver.Está neste link:
    http://recantodosautores.blogspot.com.br/2013/10/comecando-escola.html

    Obrigada e abraços,

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    1. Anne Lieri, amiga.
      Já lá fui e não mereço a honra de sua distinção. Emocionou-me.
      O meu agradecimento vai apenas num beijo, sincero e verdadeiro.
      Sei que acredita.

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  9. Caramba, de cá estou a imaginar o rebuliço nas suas emoções... Haja coração e esperneio, né?! São incríveis essas experiências, forçadas ou conduzidas! Ainda bem que houve da sua parte reações e decisões, Xico!
    Ótima narração!

    O meu abraço... Boa Tarde!

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    1. Anete.
      Terá sido porventura o primeiro confronto real com um "monstro" chamado vida. Tipo choque térmico, Ainda bem que tive essa oportunidade em quase criança e não como a maioria que as sentiu aquando chamados para a tropa, serviço militar obrigatório. Nessa altura já ia "rodado" e conhecia a vida de Lisboa, pelo menos um pouco.
      E, caramba, cá continuo calmo e feliz, mesmo depois de vagas alteradas.
      Abraço grande, Anete.
      (Basta acreditar no dia seguinte e saber que não estamos sós...).

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  10. Vim agradecer teu carinho por lá! Fico feliz! abração, lindo dia! chica

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  11. Fiquei contente que gostou da postagem e pretendo fazer outras de vez em quando,inclusive do blog dos forninhenses.Abraços,

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  12. Judiaria, tadinha das crianças tão pequenas são afastadas da família para se tornar homens de bem. Essa separação me emotiva pois lembro que em nossa família também ocorreu esse fato. Também fui estudar longe de casa, que vontade de fugir e voltar para casa me deu, hoje quando me lembro me emociono.
    Chegasse a concluir o seminário? Sei que padre não és,. Tive um amigo, estudamos junto no Ensino Médio e ele se tornou padre, pedi para ele dar as benção em minha bodas, mas ele se apaixonou e foi atras da felicidade.
    Tu estas fazendo uma coisa que adoro, que é decorar e comprar, hahaha Ai em tua cidade tem muitos móveis antigos? Sou louca por antiguidades, aqui em casa Alfredo me proibiu de comprar qualquer coisa, nem uma agulha posso comprar. Estamos fazendo aula de tango e não temos aonde treinar, ele está furioso pois está com as canelas roxa de bate nos móveis. hahahah E o galpão ainda não está pronto.
    Tenha um ótimo dia e não compre muita coisa,

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    1. Olá Anajá
      Padre não fui, não dava, entenderam eles e eu também.
      Rescisão de mútuo acordo.
      Antiguidades, felizmente não faltam em Lisboa lojas de antiguidades de alta qualidade. Mais romântica, recomendo a famosa Feira da Ladra, junto ao Panteão Nacional.
      Aulas de dança de salão,: haverá no mundo algo superior aos "Alunos de Apolo", berço de tantos campeões de gabarito internacional?
      Trate das canelas do Alfredo e acabem o galpão.
      Abraço aos dois

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  13. Meu querido amigo,
    ...não sabe das lidas por estas bandas...
    Tinha sim saudades, mas vou ser sincera, posso? estava à sua espera! Assim é mais rápido chegar até aqui! Verdade Xico, lembrei sim .mas andava de dia em dia sabe como é?
    E outra história que me fez recordar quando me levaram para o colégio interna!
    Ai... ninho dos pais, ai...impessoalidade de tudo! Ai, saudade!
    Marcou-me tanto que hoje aqui me arrepiei!
    O tempo marca mas leva também!
    grande abraço

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    1. Pois é minha amiga Manuela.
      Se o tempo marca e leva, gratos ficamos por também trazer de volta...saudade pura.
      Muito bom tê-la de volta e saborear sua poesia.
      Um abraço.

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